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Sem nome

Dantes, e este dantes não conta mais de algumas décadas, as pessoas eram conhecidas pelo nome próprio ou nome de família. Os filhos de algo, os fidalgos, eram mais conhecidos pelos apelidos nobiliárquicos do que pelo nome de batismo. Assim eram os Lencastre, os Menezes, os Albuquerque, os Cadaval, etc., etc. Os do povo eram conhecidos pelo nome que usavam ou pela profissão que tinham por herança: assim eram os tones, os quins ou o manel do sapateiro, etc. etc. Tinham um nome e obrigação de o não desonrar. Era uma herança terrível mas simultaneamente uma escola de conduta social. Estender a mão era selar um compromisso. Eu também tinha um nome mas agora já não tenho. Perguntam-me qual o seu número fiscal em vez de me perguntar como se chama; se vou a uma instituição bancária além de me pedir o NIF também me perguntam pelo IBAN; se mando reparar o automóvel solicitam-me o número da matrícula e depois o inevitável número do NIF. Já não tenho nome nem individual ou de família. Se isto me incomoda? Respondendo com sinceridade não sei, mas sinto que me reduziram a números informáticos, eu passei a ser mais uma coisa do que uma pessoa. Pesa na minha cidadania, isto é, retira-me alguma valência como cidadão? Não, não me retira os direitos nem condiciona os deveres. O que sinto é que qualquer dia deixo de falar porque em vez de responder aos que me perguntam ao que vou, estendo-lhe o cartão de cidadão e lá tem tudo aquilo que me perguntam. Farei o mesmo na revisão do carro entregando-lhe os documentos em vez de entabular com o funcionário uma troca de palavras triviais que mesmo na sua trivialidade sempre era início de um diálogo ou abertura para a socialização que me fazia mais ser com os outros do que um número informático. O seu contacto? pergunta-me a senhora do guiché. E lá vai um número. Quer que lhe mande os resultados das análises por e-mail? interroga-me a funcionária do laboratório e lá vai uma sigla com arroba pelo meio. E eu fico a pensar neste mundo moderno que não antevia há dez ou vinte anos e sinto-me fora do baralho. Não estou a questionar os avanços desta sociedade que não conhece ninguém pelo nome e que tudo referencia por números; as chamadas de telemóvel ficam guardadas nas torres de contacto, tem números de chegada, horas e minutos da sua emissão, as câmaras de vigilância públicas, de auto-estradas e até domiciliárias, dão-me as horas em que eu entrei ou saí. Passamos de pessoas a números e isto até me leva a pensar que a toponímia urbana vai um dia substituir a nomenclatura das individualidades, aliás como já há muito se faz ou fazia na cidade de Espinho. Dou-me a chamar por mim, em voz alta, no silêncio da casa, para ouvir o meu nome e julgar que sou a mesma pessoa que me conheço. Receio que um dia, na biblioteca, ao requisitar Eça de Queirós me perguntem: número do cartão de cidadão, número fiscal, IBAN, número do cartão de aposentado, carta de condução, documento de morada desse tal Queirós,… perante a nega a todas estas perguntas, tenho medo que não me deixem requisitar A Ilustre Casa de Ramires, que queria reler. É assim ou, se está no programa do computador com a identidade em número, ou não existe. O teu nome já não existe, apenas és uma referência numérica num programa de gestão de pessoal da WEB. Assim se reconhecia o gado no velho Oeste. Se for a um serviço de atendimento não diga quem é, diga ao que vai e mostre-lhe todos os cartões que tem e terá sorte se lhe não pedirem mais um.


Autor: Paulo Fafe
DM

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22 outubro 2018