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Sexo e Relação do Porto

Causou justa e geral indignação o recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP) que confirmou a sentença do Tribunal Judicial de V.N. de Gaia que condenou dois funcionários (barman e porteiro) de uma discoteca dessa cidade a quatro anos e seis meses de prisão, mas com suspensão da pena, pela prática do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.

E isto porque, não estando em causa o tipo legal de crime cometido pelos arguidos – que não sendo o de violação, punível com pena de prisão de 3 a 10 anos, é muito semelhante a este por envolver um acto sexual relevante (cópula) com pessoa inconsciente ou incapaz de resistência, punível com pena de prisão de 2 a 10 anos –, não se compreende nem se aceita que o Tribunal de 1ª Instância e, por maioria de razão, o TRP, como instância de último recurso, hajam suspendido a execução daquela pena, numa atitude de complacência e de desvalorização do comportamento dos delinquentes que não acha na factualidade dada como provada uma justificação lógica e adequada.

Mas vamos aos factos.

Deram as instâncias como provado que Maria, uma mulher de 26 anos que se encontrava inconsciente na casa de banho da dita discoteca, foi abusada pelo Jorge (porteiro) que, verificando a incapacidade da Maria de reger a sua vontade e de ter consciência dos seus actos, decidiu manter e manteve com ela “relações sexuais de cópula vaginal completa, depois de a ter despido da cintura para baixo, mantendo-lhe a roupa a meio das pernas”.

Depois de ter recuperado a consciência, quando ainda estava na casa de banho, deitada no chão e com a cabeça encostada à porta de entrada, Maria sentiu um empurrão na porta e, consequentemente, na cabeça, ouvindo as vozes do arguido Jorge e do arguido Mário (o barman), que igualmente pretendia entrar na casa de banho, após o que, de seguida, voltou a perder a consciência.

Tendo recuperado os sentidos, instantes após, ouviu novamente as vozes de ambos os arguidos e “sentiu umas palmadas na zona dos seus glúteos, apercebendo-se também, nesse momento, que estava com os calções de ganga, as meias-collants e as cuecas puxadas até à zona dos joelhos, o que imobilizava os seus movimentos da cintura para baixo, e que se encontrava posicionada de bruços, com o tronco totalmente apoiado na área do lavatório”.

Tendo então, mais uma vez, perdido a consciência, Maria só voltou a recuperá-la quando já se encontrava sentada no sofá da discoteca, estando nessa altura já vestida da cintura para baixo e tendo junto de si os dois arguidos, um dos quais lhe atirou água para o rosto. Mais se provou que, estando ela inconsciente, o arguido Mário manteve igualmente com esta relações sexuais de cópula vaginal completa.

O mencionado acórdão, subscrito pelos juízes desembargadores Maria Dolores da Silva e Sousa (relatora) e Manuel Ramos Soares, manteve, como acima se disse, a suspensão da dita pena de prisão, considerando que a culpa dos arguidos se situava “na mediania”, que a ilicitude dos factos era mínima, pois não houve danos físicos nem violência e que o contexto que precedeu a prática dos crimes foi em “ambiente de sedução mútua” e “ocasionalmente, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica”.

Ora, salvo o devido respeito, da leitura do acórdão constata-se que esta fundamentação é muito pobre ou mesmo medíocre. Desde logo porque, como bem salientou o Ministério Público (MºPº) nas suas alegações de recurso, os arguidos não confessaram os crimes nem mostraram qualquer arrependimento. E, por outro lado, a suspensão da pena deixava “perpassar na comunidade uma ideia de impunidade de uma acção tão grave como aquela pela qual os arguidos tinham sido condenados”.

Efectivamente, não se lobriga como pôde o TRP concluir que “as circunstâncias em que ocorreram os factos, as condições de vida dos arguidos, pretéritas e presentes, e a personalidade” dos mesmos permitiam extrair que as finalidades da punição poderiam ser alcançadas com a simples ameaça de prisão e a censura do facto.

E mesmo que pudesse admitir-se que os arguidos não revelaram propensão para a reincidência – o que apenas em teoria se concede, atenta a normalidade com que a nossa jurisprudência encara a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena neste tipo de crimes –, sempre teriam de considerar-se de capital importância as exigências de prevenção geral, em sociedades e em ordenamentos jurídicos como os nossos em que as relações sexuais sem consentimento são comummente tidas como semelhantes a efectivas violações e em que os danos psíquicos delas resultantes são tão ou mais valorados que os danos físicos.

Entendo, por isso, que o acórdão em apreço como, aliás, aqueloutro (de 11/10/2017), relatado pelo Juiz desembargador Neto Moura – que, numa linguagem “inadequada” e com “erros grosseiros”, manteve a pena suspensa a um homem que agrediu violentamente a mulher adúltera com uma moca com pregos – relevam de um machismo e de um preconceito intoleráveis nos tempos hodiernos e dão à sociedade um sinal errado: o de que, afinal, vale a pena cometer estes tipos de crimes…

Não admira, por isso, que o sentimento de revolta aflore espontaneamente na comunidade nacional e se tenha traduzido até em manifestações de rua como as que, há dias, ocorreram no Porto, em Coimbra e em Lisboa.

Penso que as reflexões críticas sobre estes acórdãos devem servir de base a um amplo e aberto debate público sobre a criminalização do sexo não consentido e sobre a violência doméstica, já que uma das funções do Direito, designadamente do penal, numa sociedade livre e democrática, deve ser o de conformá-la e de regulá-la de acordo com os mais altos e actuais valores jurídicos.

A Relação do Porto, com o prestígio que lhe advém de mais de 436 anos de existência, tem obrigação de dar o exemplo como Casa de Justiça, sempre na dianteira do seu tempo.


Autor: António Brochado Pedras
DM

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5 outubro 2018