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Memorial de São Gens de Calvos, de José Bento Silva

Entre o que mais impressiona na obra Memorial de São Gens de Calvos, emerge a força testemunhal das múltiplas vozes que, em múltiplas ocasiões, amplificam outras vozes vindas, não raramente, de tempos remotos. Todas encontram adequado eco na escrita do autor. Conjugam-se essas vozes como que compondo uma portentosa polifonia sobre uma freguesia da Póvoa de Lanhoso. O Minho antigo e moderno aqui se acha. O livro começa com uma evocação do orago de Calvos. São Gens é, portanto, o primeiro protagonista a entrar em cena. O autor põe-no a falar em discurso directo, mostrando que há pessoas de ontem que podem ter palavras adequadas à gente de hoje. O santo fala, podendo fazê-lo com contundente ironia, como quando repara: “Alguns até dizem que eu sou o ‘são sangens’”. Ou com indisfarçada mágoa: “Parece-me que a minha influência aqui na freguesia de São Gens de Calvos tem sido muito pouca”. O lamento é sublinhado por uma constatação: “É que, quereis saber, até hoje, e já cá estou há um bom par de séculos, ainda nenhum de vós atribuiu a um dos filhos o nome deste padroeiro que tantos vos preza e vos ama”. A prédica serve de pretexto para sublinhar a contemporaneidade do exemplo do santo de Calvos. A atitude que o notabilizou – recusando-se a cumprir uma ordem que ditaria a morte dos cristãos – não difere muito de outros exemplos de desobediência em nome de valores ou de ideais, como Aristides de Sousa Mendes, recentemente evocado em Braga. Alguns ensinamentos, ministrados com bonomia, mereceriam ser devidamente apreendidos. O culto ao santo de Arles, que viveu no século IV, é historiado, referindo José Bento Silva que, por Bracara Augusta, a devoção terá começado no século VI, por influência de Martinho de Dume, remontando a paróquia de São Gens de Calvos a, pelo menos, ao século XI. Sobre as devoções em Calvos se debruça também o autor. Elas não são isentas de algumas peripécias, como quando, em 1811, um paroquiano desviou uma imagem de Santa Bárbara, tendo o visitador mandado, “sem perda de tempo”, o pároco notificar o meliante “para que torne a colocar no mesmo lugar a sobredita imagem”. As alusões às imagens religiosas; à igreja e à capela; às confrarias; à encomendação das almas; às reminiscências pascais; ao mês de Maio, mês de Maria; aos clamores; ao mês e ao sermão das almas no último domingo de Novembro comprovam uma fervorosa religiosidade popular. A devoção pelas almas, promovida em Calvos pela Confraria ou Irmandade das Almas, marcava tão intensamente a prática religiosa que o compositor Fernando Lopes-Graça a singularizou na obra “Onze encomendações das almas”, com origem no Cancioneiro Minhoto, de Gonçalo Sampaio, uma das figuras ilustres de Calvos. Amiúde compostas com um tom edificante, as histórias que José Bento Silva nos oferece encontravam-se guardadas na sua memória de vida, foram captadas em incontáveis conversas tidas ao longo dos anos, ou são provenientes das páginas de profícuas leituras. O Memorial de Calvos inclui uma detalhada menção às narrativas protagonizadas por personagens de Camilo Castelo Branco, que por aqui ficcionalmente andou, trazendo para a freguesia um falso D. Miguel, que se aproveita do abade para comer lautamente. A casa do abade, em A Brasileira de Prazins, ou “uma taverna em São Gens”, em O demónio do ouro, foram lugares ao serviço da pena de Camilo Castelo Branco. No livro de José Bento Silva, associados ou independentes dos episódios relatados, os espaços da freguesia, e não apenas, evidentemente, aqueles em que se come e bebe, são exaustivamente calcorreados e descritos. Aí encontramos, pois, as ruas, os lugares, as propriedades, as casas. As voltas por Calvos incluem pausas para olhar para o ribeiro, as fontes, os vestígios arqueológicos ou o carvalho de Calvos. “Olha, acho que isso não tem interesse nenhum”, disse, em certa ocasião, um dos homens de Calvos ao saber da intenção de José Bento Silva de escrever uma obra sobre a freguesia. Justificava o parecer afirmando que na freguesia não havia “talentos”. O autor ouviu, mas preferiu conceder maior crédito aos que diziam: “A minha vida dava um romance”. Daria e deu. Grande parte das cerca de mil páginas é “como um romance”, ditado pelo amor a uma freguesia e à sua gente. Como dizia um professor de José Bento Silva, “o povo todo é que sabe tudo”. Memorial de São Gens de Calvos bem o demonstra. P.S.: Extractos do texto que serviu de base à apresentação do livro de José Bento Silva ontem realizada em São Gens de Calvos, terra de minha avó, em sessão presidida pelo presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Lanhoso.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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5 agosto 2018