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“Quando um imigrante habitar convosco”

Não falta quem considere que, nos Estados Unidos da América, os ricos mais gananciosos sempre procuraram colocar em Washington, na presidência do país, e, a seguir, na administração, quem lhes obedecesse fielmente.

A situação mudou com Donald Trump. Com ele, chegou o momento de serem os próprios capitalistas mais insaciáveis a tomar directamente conta do poder, sem, portanto, qualquer intermediação. O novo presidente entende a política como um mero prolongamento dos negócios, não pretendendo ter a maçada de o disfarçar.

Foi, aliás, sintomático que, durante o encontro com o presidente da Coreia do Norte, lhe tenha ocorrido sugerir ao homólogo a edificação de estâncias turísticas para recreação dos vizinhos chineses e japoneses, com sucesso garantido atendendo ao que considerou ser a privilegiada localização das praias coreanas.

O tempo que os negócios tomarão a Donald Trump não sobra para que possa cultivar aquilo que outrora se chamava “a vida do espírito”. Basta escutá-lo meia-dúzia de vezes para se perceber que não dispõe de um módico de cultura geral que, às vezes, serve para amenizar a grosseria; e que o vocabulário que conhece e usa não excederá escassas dezenas de palavras.

Não se estranhará que haja quem o imagine incapaz de escrever sozinho não um discurso, mas um parágrafo escorreito mais longo, por não ser capaz de articular correctamente a segunda frase com a primeira.

Os que o rodeiam parecem imitá-lo em ignorância e prosápia. O attorney general, cargo equivalente a ministro da Justiça, Jeff Sessions, provocou há dias uma fortíssima polémica ao invocar uma passagem da Bíblia para defender a política de Donald Trump que separa pais e filhos que tentam entrar nos Estados Unidos da América, enjaulando, sozinhos, os mais novos.

A indignidade da decisão é de tal monta que até a mulher de George W. Bush, não propriamente uma radical, se revoltou com o que estão a fazer às crianças.

“Aprecio a necessidade de reforçar e proteger as nossas fronteiras internacionais, mas esta política de tolerância zero é cruel. É imoral. E parte o meu coração”, declarou Laura Bush, num texto divulgado em Portugal, na quarta-feira, pelo Público.

Esquivando-se àquele mínimo de empatia que oferece alguma concórdia às nossas sociedades, Jeff Sessions quis socorrer-se de S. Paulo para defender o procedimento contra os mais pequenos, referindo uma passagem que o apóstolo escreveu aos cristãos que moravam em Roma nos anos 50.

“Citaria o apóstolo Paulo e o seu claro e sábio mandamento, emRomanos13, para obedecer às leis do governo porque Deus o ordenou para que a ordem seja mantida”, disse o ministro da Justiça dos Estados Unidos da América.

Em “This is what the Bible’s Romans 13 actually says about asylum and what Jeff Sessions omitted”, publicado pelo sitenoticioso e opinativo feito por académicos e investigadores The Conversatione pelo jornal The Independent, Casey Strine, historiador da Universidade de Sheffield, notou que Jeff Sessions usou a Bíblia porque um dos opositores mais contundentes da repressão exercida sobre os que pedem asilo tem sido a Igreja Católica.

Mencionando aEpístola aos Romanos, tentou minar a autoridade católica. Referindo que citar uma declaração tão genérica retirada do contexto é susceptível de servir para defender qualquer coisa que um governo faça, de bom ou de mau, de justo ou de injusto, Casey Strine explica minuciosamente como, onde e por que o ministro da Justiça de Donald Trump deturpa S. Paulo. Desde logo, porque, na carta citada, pouco depois, o apóstolo assegura que “o amor não pratica o mal contra o próximo, pois o amor é o pleno cumprimento da Lei”.

O historiador acrescenta que S. Paulo – como, antes, Jesus de Nazaré – sabia muito bem o que Deus disse a Moisés: “Ama o teu próximo como a ti mesmo.” (Lv 19, 18).

Se Jeff Sessions – e não, evidentemente, apenas ele – indagasse qual a vontade de Deus transmitida a Moisés, teria ainda de se confrontar com outra passagem do Livro do Levítico (19, 33) que arrasa as políticas que defende: “Quando um imigrante habitar convosco no país não o oprimais. O imigrante será para vós um concidadão: amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes imigrantes na terra do Egipto. Eu sou o Senhor, vosso Deus”.


Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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24 junho 2018