Auschwitz, a inverosímil verdade
Nesta quinta-feira, 27 de Janeiro de 2005, faz 60 anos que foi libertado o maior campo de extermínio nazi, Auschwitz-Birkenau, erguido pelos alemães nazis em Maio de 1940; de campo de trabalho e de extermínio para os presos políticos polacos (que não cabiam nas prisões do III Reich), depressa foi transformado em campo de morte generalizada.
Muitos outros campos existiram, Buchenwald, Dachau (o primeiro, em 1933, logo que Hitler subiu ao poder), Belzec, Chelmno, Majdanek, Sobibor, Treblinka; em 1942, a Alemanha nazi decide proceder ao extermínio massivo de 11 milhões de judeus que então viviam na Europa ocupada por Hitler; para isso, construíram, ao lado de Auschwitz, o imenso campo de horror inimaginável que foi Birkenau: numa superfície de 175 hectares, os presos eram sistematicamente eliminados, na sua maioria judeus; quatro crematórios, com câmaras de gás, permitiam assassinar e eliminar oito mil pessoas em meia hora; aí, onde o destino era morrer e morrer do modo mais hediondo, encontraram a morte 960 mil judeus, 75 mil polacos, 20 mil ciganos, 15 mil soviéticos e 12 mil vítimas de outras nacionalidades.
A atrocidade não tinha limites: as cabeleiras utilizaram-se para fins industriais, os dentes e anéis de ouro fundiram-se em lingotes, os relógios e objectos pessoais eram extorquidos pelos seguidores de Hitler; distribuíram-se mais de 300 mil pares de sapatos pelos guardas e, aquando da libertação, encontraram-se sete mil quilos de cabelo para as fábricas do Reich.
Elie Wiesel, também ele ex-preso desta “fábrica da morte”, dizia, rememorando a trágica memória meio século depois: “É verdade que nem todas as vítimas eram judeus; mas todos os judeus eram vítimas”. E clamando aos povos, quis retirar a lição de Auschwitz: é preciso “combater o fanatismo, a violência e o terror”.
Há 10 anos, quando se recordavam os 50 anos de Auschwitz, no Apelo às Nações do Mundo, redigido por sete titulares do prémio Nobel, aí presentes com delegados de 24 nações (que foram a Auschwitz recordar a morte dos seus conterrâneos), dizia-se no início: “estamos aqui para recordar o pior crime cometido na História (…)”.
O professor Wladyslaw Bartoszewski, também ele ex-preso do campo, proclamava: “confiamos e expressamos a esperança de que nos finais do século XX se criem instrumentos que garantam a solução pacífica de todos os conflitos”.
Contudo, a nossa época, após o termo da guerra fria, quando clareiras de paz pareciam irradiar nas relações entre os povos, a tenebrosa imagem de Auschwitz reaparece clamorosa, desde os dramáticos acontecimentos dos Balcãs às tragédias do Cáucaso.
O Apelo, lançado nesse lugar de morte, que enegrece a Europa e a História, recebe o maior desmentido pelos factos que a barbárie prolonga nos nossos dias.
Cada vez mais se verifica que é crucial mostrar ao mundo o que foi Auschwitz, conhecer a verdade, nua e crua; a melhor comemoração, hoje, 60 anos depois, não será colocar flores nos túmulos, mas fazer com que tais intentos não sejam mais possíveis no mundo – na Europa, nos Estados Unidos, na África, na Ásia, não esquecendo nunca o Médio Oriente, do lado de Israel ou do lado da Palestina.
Se Fukuyama anunciava o “fim da história”, peremptoriamente, em 1989, aquando da queda do muro de Berlim, depressa se verificou o seu grande engano, desde os campos da Bósnia, os genocídios no Ruanda, às torturas no Iraque; ademais, no coração da velha Europa – da Europa da cultura e dos valores -, muito recentemente, os acontecimentos trágicos na ex-Jugoslávia e fora dela, mostraram que os homens ainda não aprenderam.
Ora, não podemos esquecer Auschwitz! O homem parece abafar o clamor da sua memória: desde as purgas étnicas na ex-Jugoslávia, à destruição sistemática na Tchetchénia, aos genocídios que se continuam a perpetrar-se, o homem esquece Auschwitz!
Desde a inquietante maré negra que ressurge com a extrema direita na Europa, a mitificação iconográfica dos símbolos nazis, a proliferação dos ataques racistas, a extensão da violência e do terror, os humanos esquecem Auschwitz!
Constata-se que cultura – a cultura europeia -, não foi capaz de proteger a humanidade europeia da loucura e da barbárie. Para o filósofo alemão, T.W. Adorno, a única cultura verdadeira é aquela que suscita a crítica, a tolerância, a cidadania, aquela que subjaz à capacidade de resistência à desumanidade e aos dogmas da intolerância racista.
Uma das vítima dos holocausto, Stefan Zweig (que se suicidou em 1942), pretendia isso mesmo, clamando pela erradicação da “pior das arquipestilências”: o nacionalismo exacerbado, capaz de transformar “identidades culturais” em potências políticas que aniquilam, excluem, exterminam…
Os europeus levam meio século a experimentar uma fórmula política original, com vista a consolidar tais princípios. A União Europeia não tem precedentes na história das ideias políticas: é um estranho acordo entre Estados, um raro processo de integração em permanente tensão, que, todavia, logrou obter paz e bem-estar.
Esta constatação, simples e objectiva, estará na génese de novas demandas de integração, de mais Estados a bater à porta da União – muito para além do que era previsível.
O apelo de Adorno tornou-se indiscutível: a cultura que suscita a capacidade crítica, o “espírito crítico”, deve estar na primeira linha, para o que é necessária a maior amplitude de informação e de conhecimento dos factos: tal informação e tal conhecimento, conjuntamente com novas entidades políticas (União Europeia, ONU, etc.), serão as mais fortes barreiras à barbárie.
Sessenta anos depois de Auschwitz, e mais que nunca, importa ensinar às futuras gerações a história da II Guerra Mundial, para que nunca mais… Na escola – especialmente nesse tempo de aprendizagem -, mas também na imprensa, no cinema, na televisão, por todos os meios, deve saber-se que o ser humano infligiu a uma outra parte da humanidade as maiores atrocidades: conhecê-las ajudará a nunca mais… as repetir.
A memória de Auschwitz, esse período mais negro da história europeia, deve ser rememorado, com urgência crucial; o imperativo ético-político impõe-se: que essa memória não fique perdida nos arquivos da história; que ela seja continuamente recordada, tanto quanto for possível, para que isso – Auschwitz -, essa inverosímil verdade, esse inferno na terra, nunca mais…
No discurso em que recebeu o Nobel da Paz, em 1986, Elie Wiesel, antigo deportado em Auschwitz, disse: “a vida nesse universo amaldiçoado era tão distorcida, tão anti-natural, que uma nova espécie evoluiu: quando vagueávamos entre os mortos, não sabíamos se ainda estávamos vivos”.
Se esta asserção expressa dramaticamente o horror que foi esse mal absoluto, é que, porque inacreditável, aconteceu. O filósofo francês Jacques Derrida insistia que, em tais condições, quando o perdão se segue a um crime imperdoável, “perdoar é um acto de loucura”.
Daí que o Apelo às Nações do Mundo termine com estas palavras: “Está dito: quem salva uma vida, salva o mundo inteiro; quem elimina uma vida, aniquila a ordem do mundo”.